As quebras de natalidade europeia e especialmente a portuguesa estão na ordem do dia. Os dados parecem avalizar cientificamente estas preocupações. No jornal Público de 11 de Julho o tema surgia em destaque; “Em 2006 nasceram menos 4100 bebés que no ano anterior”, o que leva a que o número médio de filhos seja de 1,36 por mulher, muito abaixo dos 2,1 necessários à renovação das gerações. Entre uma série de outros dados preocupantes, uma previsão indica que Portugal perderá até 2050 cerca de um quarto da população. Investigadores confirmam na mesma notícia que “os quatro mil bebés que nasceram a menos no ano passado vão fazer falta”. Estas preocupações revelam dois traços que continuam a caracterizar o espaço social português, e que não devemos ter receio em nomear: racismo e sexismo.
A questão ganha destaque precisamente na semana em que a regulamentação da lei da Interrupção Voluntária da Gravidez entra em vigor (15 de Julho). O Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, mandatário de um dos movimentos que defendiam o “Não” no anterior referendo, tratou de marcar a agenda mediática com alguma antecedência. Em Braga, no Congresso das Misericórdias Portuguesas, no dia 3 de Junho, Aníbal Cavaco Silva defendeu “um novo modelo social para contrariar a tendência demográfica europeia e portuguesa para o envelhecimento da população”. Subjacente a este discurso está a ideia do papel social que a mulher deve desempenhar: parideira. Depois da derrota dos defensores do “Não” no referendo sobre a IVG, trata-se agora de recentrar o lugar da maternidade nas representações e construções sociais da identidade feminina, por um lado. Por outro lado, de re-nacionalizar os corpos através da ideia de que ter filhos é um dever cívico e não uma questão de desejo individual. De acenar com o sentimento de culpa às mulheres não apenas pela morte de uma “pessoa” por ser mas de todo um povo com uma história que remonta à origem dos tempos.
É precisamente neste ponto que o racismo entra em jogo. O problema, como as palavras de Aníbal Cavaco Silva indiciam, não é a perda populacional em si mesma. Os dados indicam, aliás, que não existe nenhuma quebra populacional. A população mundial era composta em Julho de 2007 por 6,7 mil milhões de indivíduos, estimando-se que chegue em 2050 aos 9,7 mil milhões. A redução populacional seria até bem recebida pelo planeta, a avaliar pela mais recente dimensão da pegada ecológica. O problema, revelador de uma forma de conceber a cidadania que privilegia os vínculos de sangue em detrimento de formas de participação social mais abertas, é a perda de nativos, de indígenas ou, de forma ainda mais clara, de “brancos” portugueses e europeus. Apesar do facto evidente que uma maior abertura aos fluxos migratórios pode ajudar a resolver não apenas a quebra de população em território português, como também contribuir para reduzir as profundas assimetrias que se observam entre diferentes regiões do planeta, essa hipótese é liminarmente rejeitada pelos mesmos sectores sociais que apelam a um crescimento da natalidade.
Estes apelos ocorrem, paradoxalmente, ou talvez não, num momento em que a segurança laboral, a segurança social e aquilo a que Giddens chama de segurança ontológica se tornam cada vez mais inseguras. Inseguranças pelas quais os imigrantes não podem ser de todo considerados responsáveis. A tentativa de re-nacionalizar o corpo feminino e de prender os corpos masculinos e femininos a determinados territórios observa-se num contexto que em cada vez mais as pessoas são entendidas como mão-de-obra ou, de modo mais eufemístico, capital humano, um bem transaccionável como qualquer outro. Este porém, ao contrário das restantes mercadorias e dos capitais, não se pode deslocar livremente. Os mercados auto-regulados aparentemente não se auto-regulam sem a mão direita do estado. A mão esquerda (a segurança social, o acesso universal e gratuito à saúde e à educação, etc.) por sua vez vai sendo amputada aos poucos, como tivemos oportunidade de observar nas recentes negociações da ICAR com o Estado português. Os direitos sociais vão-se transformando, aos poucos, e com a ajuda imprescindível da Santa Madre Igreja, em caridade e beneficência. A mão invisível deve ser uma entidade metafísica.
Artigo publicado numa revista da praça no mês de Setembro e agora recuperado a propósito do Prós e Contras desta semana e do que
aqui se comenta.