HotelLisboa

O porteiro do estabelecimento, Semion, acendera todas as lâmpadas das paredes e o lustre, assim como o candeeiro vermelho em cima da entrada. (Aleksandr Kuprin)




No bar do hotel




Não vi o Prós e Contras ontem, mas apanhei com a entrevista que Luis Campos, um dos membros da comissão técnica que desenvolveu o estudo em que se baseia a reestruturação da rede de urgências, deu a Alberta Marques Fernandes. O senhor disse para aí umas dez vezes ao longo da entrevista que estava ali enquanto técnico e não tinha nada a ver com a decisão política que foi tomada. E defendeu o seu estudo, e fê-lo bem. Ao longo da entrevista tornaram-se, porém, visíveis algumas fragilidades do estudo. Fragilidades que resultam não da incompetência da comissão que desenvolveu a investigação mas dos propósitos de quem a encomendou. A questão central no debate e em relação à qual Luis Campos não tinha muito para dizer está relacionada com o papel que os serviços de urgência desempenham no sistema de saúde português. O técnico dizia que os SAP, os centros de saúde e todos os outros serviços de saúde não foram tidos em conta na investigação e que o congestionamento dos serviços de urgência resulta de um uso indevido desses mesmos serviços, e que estes não podem servir de substitutos às consultas nos centros de saúde e a outros tipo de serviços de atendimento não urgente. Disse ainda, quando Fernandes recordou os casos ocorridos no Alentejo, e veja-se a notícia de hoje no Público que dá conta de uma redução no orçamento do INEM para este ano, que a questão do transporte dos doentes para as urgências era importante mas que não tinha que ver com a reestruturação da rede e que era outro tema. Daqui resulta a má fé que pode ser atribuída ao Ministério e a justificação para o descontentamento das populações. Conhecendo-se o modo como funciona o sistema de saúde e as longas listas de espera para simples consultas os servuços de urgência são um bem essencial para os que não podem recorrer ao sector privado. Mais ainda, nas regiões do interior onde até o sector privado escasseia, as vias de transporte são de qualidade duvidosa e o transporte de doentes é praticamente inexistente o encerramento de um SAP é uma questão dramática. O modo como o processo foi gerido e a utilização intransigente de um conhecimento pericial condicionado à partida permite-nos desconfiar da bondade do Ministério da Saúde e do Governo. Para quem se tennha dado ao trabalho de reparar, em momento algum o Ministro da Saúde falou no aumento dos investimentos nos cuidados de saúde primários ou no aumento de vagas nos serviços quotidanos. Apenas o fez quando foi pressionado pelas autarquias e pelas massas populares. Tendo em conta as recentes políticas governativas é de desconfiar que este é mais um passo para a privatização dos serviços públicos, mais uma vez pela porta do cavalo. Santana Castilho, na edição de ontem do Público escrevia sobre a criação de uma empresa, a "Parque Escolar, EPE". Trata-se de uma empresa pública que foi criada para gerir o parque escolar e colocá-lo a render em termos imobiliários, retirando grande parte do poder dos conselhos directivos das escolas na gestão das instalações que dirigem. A empresa pode comprar e vender por ajuste directo, sem a ncessidade de concursos públicos e para além de gerir as escolas secundárias "... pode, acessoriamente, exercer quaisquer actividades, complementares ou subsidiárias do seu objecto principal, bem como explorar outros ramos de actividade comercial ou industrial...". Os seus gestores têm o estatuto de gestores públicos, com as indemenizações que daí decorrem. Junta-se o melhor dos dois mundos. A flexibilidade de negócio dos privados com os privilégios salariais do público. Tendo em conta estes indicadores torna-se facilmente defensável a ideia de que mais do que o bem estar geral e o combate aos corporativismos e aos localismos que por aí campeiam o que está verdadeiramente em causa é o demantelamento não apenas de umas urgências mas do estado social. Aos poucos.
Ainda continua


Em alternativa ao Politeama




Temos assistido ao longo dos últimos meses a um conjunto de movimentações populares que não devem ser ignoradas. Desde o encerramento das maternidades até ao caso dos STCP no Porto passando pelas recentes iniciativas nas localidades onde as urgências vão ser encerradas é visível o desconforto de um conjunto de grupos sociais com o desinvestimento nas funções sociais do Estado. Estas manifestações apresentam, no entanto, aspectos contraditórios. Ajudam, antes de mais, a combater um certo senso comum liberalizante de pendor economicista que se vai instalando na opinião publicada e a mostrar que existe um "país real", para utilizar uma metáfora que esteve muito em voga nos anos oitenta, onde de facto as políticas têm impacto efectivo no quotidiano. Em segundo lugar, e apesar da influência que os poderes políticos locais tiveram nalgumas destas manifestações, são um sinal evidente das possibilidades de actuação fora do espaço partidário e da vitalidade daquilo a que alguns gostam de chamar sociedade civil. Exemplos similiares podem ser encontrados por exemplo em Alfornelos onde foi criada uma associação para protestar contra o traçado da CRIL, que, diga-se de passagem, é um monumento à imbecilidade. O problema é que a maior parte destes movimentos revestem-se de um pendor paroquialista e conservador. Quando vemos em Valença cartazes a dizer qualquer coisa do género "fechar maternidades e urgências para abrir salas de aborto" temos naturalmente de ficar de pé atrás.Este povo, ou a multidão (para utilizar um termo da moda), que protesta é o mesmo que também é capaz de criar mílicias populares para perseguir ciganos e drogados. A justiça popular é fixe, ma non troppo. Mais ainda observamos aqui o factor "piscina olímpica". Na maior parte destes casos os protestos não são alicerçados numa lógica de defesa das funções sociais do Estado ou da qualidade dos serviços prestados, mas trata-se essencialmente de defender as "nossas urgências", o mesmo tipo de lógicas que leva ao investimento por parte dos poderes locais num conjunto de obras mais ou menos monumentais de racionalidade e alcance social duvidosos. Prevendo este tipode reacções, de forma sábia, no sentido chico esperto do termo, o Governo responde da mesma forma que responde aos protestos dos funcionários públicos: são protestos corporativos; visam defender privilégios particulares contra o bem estar geral. Para provar apresenta um estudo que ainda não vi ser contestado por ninguém. Diz o documento que com a restruturação da rede de urgências serão "apenas" 50 mil pessoas a ficar a mais de uma hora de um serviço de urgências contra as 450 mil que agora se observam.
Continua nos próximos capítulos, que isto de postar lençóis afasta a clientela.


Para Bagdade


Alexandre Soares, director do Record, comentou para um jornal gratuito os resultados de um estudo sobre violência doméstica. Notou a continuação da violência sobre as mulheres, sinal do atraso do país, mas, enfatize-se o mas, aquilo que o chocou verdadeiramente, enfatize-se o verdadeiramente, é a violência sobre as crianças. Seguiu indignado discorrendo sobre a questão e terminando com uma subtil defesa da justiça popular. Traduzindo, bater nas mulheres é chato e tal, mas não muito, assuntos domésticos, já se sabe, ficam entre portas e nunca deram uma boa notícia. Cultiva-se a velha definição imbecil, que aparentemente continua a fazer escola, que notícia é o homem que morde no cão e não o cão que morde no homem. No caso da violência sobre as crianças, segundo Soares, a questão é absolutamente, totalmente, incomparavelmente, diferente, não tem nada a ver. O tipo que bate na mulher é um tradicionalista, digamos, um pouco bafiento é certo; já o que bate na criança é um ogre, útil para vender jornais e noticiários e apelar para o sentimento justicialista: pendura-se já o tipo na primeira árvore que se vir por aí.

Na última semana falou-se nos media de um notícia extraordinária: as pessoas que estudam têm uma esperança de vida maior. Procurei perceber porquê, qual o ingrediente inerente ao estudo que provocava a longevidade. Não dizem. Estou disposto a apostar, sem recorrer a vastas equipas de especialistas universitários, que, além das pessoas que estudam, as que têm carros com altas cilindradas também vivem mais tempo, bem como as que passam mais férias fora do local de residência, e as que tem casas com mais assoalhadas, as que investem em fundos de investimento, enfim, os que têm mais dinheiro. Mas é apenas um palpite.

João Carlos Espada, com aquela franqueza superior do otário, aparentemente muito apreciada em departamentos universitários por essa Europa fora, jura a pés juntos que a origem do problema do Iraque, como toda a gente sabe, são as lutas entre seitas islâmicas. Como é evidente.

Suspeito que a investigação sobre a relação entre o estudo e a longevidade tenha sido pensada por um Espada qualquer, já que as lógicas são semelhantes. Talvez fosse possível pôr o Espada à frente do Record; comer umas sandes de torresmos e umas minis numa rolote à saída de um estádio perto de si fazia-lhe bem. Mandava-se, entretanto, o Alexandre Soares para Oxford ou Cambridge, para um necessário polimento. Melhor ainda seria enviar os dois de férias para Bagdade.




Porque hoje é sábado ou da institucionalização



Porque esta é uma casa dedicada às coisas do amor




A edição de hoje do jornal o Jogo dá-nos uma informação interessante. Mais uma que contraria a ideia feita de que o Estado Novo tinha no futebol um dos seus principais instrumentos de propaganda e alienação. Citando um responsável leixonense, a velha glória Raul Oliveira, o jornal relata brevemente a aventura do Leixões numa eliminatória da Taça das Taças, durante década de 60. O simpático clube foi eliminado da competição por uma equipa da Alemanha Oriental, depois de ter jogado ambas as mãos no terreno do adversário, por Salazar não permitir a entrada da equipa alemã neste jardim à beira-mar plantado. Mais um grande serviço do ditador à pátria.


Lógicas gerais


Cá por casa já há muito tempo que não se compram jornais, sejam eles desportivos, diários ou semanários. O Público foi aquisição diária durante alguns anos, mas agora e só para ir sabendo o que se passa, e a regra é a canibalização da assinatura da versão on-line de um amigo. Há algum tempo que a despolitização da imprensa de referência é um dado mais ou menos evidente, independentemente do nome da secção onde se insere a análise política. Um dos momentos mais altos terá sido a direcção de Fernando Lima no DN que colocou nas páginas de opinião do jornal uma série de tipos, com um ar mais ou menos duvidoso, saídos das caves de uns escritórios de advogados. A tentativa deste jornal em ir buscar audiências à imprensa económica, secção cujo crescimento no Público também é evidente, pode ser um dos indicadores desta despolitização e de uma forma, não tão nova quanto isso, de transferir para o reino da técnica o que é essencialmente do espaço da política. O que é mais incompreensível neste processo é, apesar de tudo, o facto de os dois diários de referência quase em simultâneo e numa lógica de concorrência directa saírem do seu espaço "natural" para conquistarem leitores noutros segmentos, o que não se afigura de todo uma perspectiva viável. Para além desta tendência de popularização dos formatos, já aqui amplamente analisada,observamos em simultâneo a sua homogeneização, visível, por exemplo, no facto de os cadernos de artes e cultura do DN e do Público terem passado a ser publicados no mesmo dia, num registo de concorrência directa. Isto é, em termos de lógica de mercado estas transformações dos critérios editoriais da imprensa de referência são de uma racionalidade económica muito duvidosa (convém não esquecer que a direcção do DN é demitida quando o jornal obtinha os melhores resultados dos últimos anos). Que forças movem então estas reconfigurações do sistema mediático português?
Apenas como nota conclusiva permitam-me manifestar o meu agrado por permanecermos todos com os testículos que Deus, que não existe, nos deu.



Cá por casa deixou de se comprar o Público. Uma das razões apontadas foi o desaparecimento dos comentadores vinculados a partidos políticos, mais um sinal da despartidarização que é também, neste caso, um sinal de despolitização. Diga-se que o Pacheco Pereira, segundo este novo critério, não pertence a um partido político. Já o Mesquita, que foi para a FLAD e que além disso é relativamente incómodo, teve que ir pregar para outra freguesia. Não fazendo sentido discutir as categorias sem avaliar o seu conteúdo é possível analisar a lógica geral que presidiu à transformação de um jornal. No caso do Público, a lógica foi a de tornar a vida mais facilitada a um imaginado leitor menos exigente. Popularizou-se mal. A eliminação de um conjunto de categorias, não foi apenas o "nacional" e a "sociedade" mas também a "educação" e a "ciência", procura simplesmente que a categoria não afaste o leitor. Diga-se que a própria fusão de suplementos fez decrescer, aparentemente, o tamanho de alguns textos, veja-se as críticas musicais e as cinematográficas. Argumentar-se-á que as notícias continuam lá, como antes. Além de não se saber exactamente se isto é verdade, o que pode acontecer é que, contando-se o número de notícias, o número de palavras, o grau de investigação necessário para a sua elaboração, cheguemos à conclusão que tudo está muito diferente. Imagino ainda que, no respeitante à organização do jornal, estas fusões, além de implicarem despedimentos, fragilizem alguma especialização necessária para alcançar algum rigor na elaboração da informação. Seja como for, estando a especular, estou disposto a doar três dos meus cinco testículos à Santa Casa da Misericórdia, se se provar que a criação da categoria "Portugal" procurava criar uma nova e bondosa dialéctica informativa que vai desatar a emancipar o pessoal. O problema da hierarquização noticiosa, ou a falta delta, não tem origem nos jornais, mas na televisão. Os noticiários estão muito mais perto do modelo do Correio da Manhã do que do Público. Este foi atrás.


Agora o mercado


Não se pode falar numa despolitização do Público à custa da inexistência temática da "política", pela simples razão de que o Público, insisto, nunca teve uma secção "Política". Era nas páginas da secção "Nacional", que tratava exclusivamente matérias políticas, que o folhetim partidário e as relações internacionais do Estado português eram desenvolvidos. A mudança que agora observamos trata de fundir "Sociedade" com a anterior "Nacional". A importância da política na hierarquia noticiosa da nova secção é ainda um caso a analisar, embora não pareça existir um maior desprezo pela política, apesar de ser evidente que perdeu a sua autonomia noticosa. Se é certo que, tendo em conta a transformação global do jornal, podermos suspeitar de um processo de despolitização em curso a simples agregação das duas secções não nos autoriza a chegar a essa conclusão. Esta leitura não implica, porém, que deixe de ser necessário perceber porque suportam os jornais secções especializadas de economia, desporto, artes e media por exemplo, e até um jornal de referência como o Público se tenha inibido, desde sempre, a autonomizar, pelo menos nominalmente, a política. As recentes movimentações no campo mediático, com a demissão da direcção do DN, que João Marcelino vai agora dirigir, não deixam de indiciar uma popularização dos conteúdos e oferecem algumas respostas. A nova linha editorial que o DN se prepara para implementar pode ser considerada no mínimo uma opção peculiar. Com o JN a dominar completamente no Norte, na área da imprensa popular, o 24 Horas em crescendo e as mudanças que dias antes o Público implementou, o DN tinha uma oportunidade única para se afirmar no espaço da imprensa de referência. Ao invés, os proprietários optaram por tentar entrar num mercado que tem roubado leitores ao DN, em especial o CM. As pressões comerciais e a necessidade de aumentar os lucros e a própria gestão que os grandes aglomerados mediáticos fazem dos seus títulos são obviamente um dos factores mais importantes para a compreensão da rápida desagregação da imprensa de referência portuguesa, mas, sem querer entrar em análises maquiavélicas, num panorama altamente concentrado como o português, não serão os únicos. No caso do Público embora essas pressões existam devem ser relativizadas, tendo em conta que o jornal nunca foi económicamente viável e nem por isso deixou de se tentar afirmar no segmento de referência. Quanto á questão nomilalista, que me pareça secundária, face aos desenvolvimentos substantivos dos jornais, "Portugal" continua a parecer-me bem mais razoável que "Nacional". Por dois motivos. Por um lado assume, ou pelo menos é uma das leituras possíveis, um certo distanciamento face aos acontecimentos que cobre, que é coisa que a ideia de "Nacional" não permitia, dado que implicava uma lógica mais antropológica na relação com o objecto e implicava um envolvimento directo com esse mesmo objecto. A neutralidade epistemológica, ou a critíca aos métodos de investigação subjectivos é uma questão discutível. Mas o que me parece mais importante é que a ideia de "Nacional" era mantida à conta da exclusão de uma série de grupos sociais, os imigrantes residentes em Portugal, por exemplo, que não encaram este espaço como o seu espaço "Nacional", e que nem têm o dever de o fazer. Para entrar numa lógica mais hiperbólica ainda, do estudante Erasmus que esteve em Portugal durante um ano e que depois de voltar para o seu país, se continuou a manter informado sobre "Portugal", etc,etc,etc. Se é certo que essa bondosa ideia de nacional, enquanto sujeito de direitos e deveres, é uma das interpretações possíveis para o termo, estou pronto para doar um testículo à ciência se fosse uma das leituras dominantes por parte da audiência ou estivesse sequer na cabeça dos produtores, o que não significa que o Portugal que o novo Público quer vender não seja o Portugal do BES, da Sagres e do Cristiano Ronaldo.



"Portugal", em termos teóricos, poderia fazer sentido. Mas a falta de hierarquização, aparentemente positiva, pode significar, com o tempo, que algumas matérias acabem por desaparecer. Que "Portugal" vai ser o mostrado pelo Público? A discussão das categorias, no abstracto, sem perceber como a coisa corre na prática, é redutora. É notório que as páginas sobre política, reduzindo o vocábulo à função de descrever o folhetim partidário, tinham pouco interesse. Ainda assim, para além da prática, a discussão das designações faz sentido. Por exemplo, "Portugal" não é necessariamente melhor do que "nacional". O nacional pode ser discricionário, é certo, mas também, sem o pernicioso "ismo", remete para a condição do cidadão perante o estado. Portugal, por si só, não significa nada, nem direitos, nem deveres, é apenas uma pertença, um sentimento. Levado o método inclusivo até ao fim nada estaria para lá de Portugal e do Mundo, apesar de Portugal, até ver, ainda pertencer ao Mundo. Mas como os leitores são portugueses, argumento já utilizado para chatear outros teóricos da conspiração nacionalista, Portugal ainda vai fazer sentido. Mas por que não distribuir o desporto, a economia, os media e as artes por "Portugal" e pelo "Mundo"? Por que razão sobrevive a "economia", o "desporto" e as "artes" como realidades autónomas e não sobrevive a política, a educação ou a sociedade? A razão é o mercado. Mas como as coisas não são unívocas é um facto que a retirada da política, à custa da sua inexistência temática, para uma secção mais acessível e aberta pode implicar que chegue a leitores repelidos pelo aborrecimento ou a especialização dos seus assuntos. Mas não deixa de ser um passo duvidoso sobretudo para um jornal que, em teoria, não precisaria de tal estratagema.


Justiça poética III


O totalitarismo é uma forma política essencialmente moderna, mas nem nisso o Estado Novo foi capaz de colocar o país no tempo dos seus congéneres europeus. Daí que possa ser designado por Antigo Regime. Expressão com reminiscências medievais.


Cinzas


O Carnaval é fixe. O carnaval é fixe enquanto momento de suspensão das hierarquias e das convenções sociais, enquanto processo de crítica e de desregramento. Há para aí muita gente que não gosta de ver gajos vestidas de gaja, de freiras ao engate, seja ele lébico ou hetero, de putos a mandarem bãlões de água a pessoal engravatado. Eu gosto. Sem querer estar a defender merdas tradicionais devo dizer que gosto do Carnaval dos cabeçudos e das máscaras. Da boémia etílica e dos caretos. O que é mau é tornar qualquer coisa que tem que ver com a vida das pessoas, ou seus desejos e as suas misérias, num espectáculo que imita a vida real. O carnaval português à brasileira podia ser bom se fizesse calor e a Soraia Chaves soubesse sambar. Mas não é isso que sucede. O que sucede é que somos banqueteados durante três dias com imagens deprimentes da sobrinha do presidente da junta, a "princesa" local, seminua, a tititar de frio e a mexer o corpo como se tivesse a ter um ataque epiléptico ao som de trios eléctricos igualmente miseráveis (no mau sentido do termo). E isso, convenhamos, não é fofo.


Há mar e mar


O novo Público é de facto uma lástima. Desde a infantilização dos leitores, veja-se a inerrabilidade do título Ípsilon, até à aposta na imagem, numa estratégia que se coaduna perfeitamente, até no modo como é operacionalizada, com a tentativa de captar novas audiências, que os autores dos estudos de mercado que antecederam esta reformulação, pensam mais em sintonia como uma cultura iminemtemente visual e pouco reflexiva, podemos observar um decréscimo na "qualidade" do jornal. E que dizer do segundo carderno diário, que parece isso mesmo, o saudoso "Caderno Diário" que era transmitido no segundo canal. Inenarrável é uma palavra bonita, e por isso não cansa com a repetição. Apesar de todos estes aspectos negativos, e são muitos, a fusão da secção "política" com a "sociedade", o que resulta na nova secção "Portugal" terá sido porventura a única boa decisão neste processo. É exactamente por ligar as questões sociais com as políticas num único espaço editorial que a nova secção pode contribuir para trazer para a discussão pública o modo como a política se articula com o quotidiano ou a sociedade civil, podendo ser útil inclusivamente para desreificar as fronteiras muitas vezes artificiais entre sociedade civil, ou sociedade, e o Estado no caso português. É evidente que tudo isto pode correr mal, e é natural que corra. Mas a ideia não me parece censurável. Quanto às apropriações e aproveitamente nacionalistas do título é certo que poderiam haver outras soluções, mas como jornal feito por portugueses, na sua maioria, para residentes em Portugal e tratando muitas vezes de questões que se passam nestes espaço que é Portugal, parece-me uma solução preguiçosa mas com algum sentido. Para mais assume uma posição simétrica à da secção "Mundo". O "Portugal" que temos é em todo o caso melhor do que o "Nacional" que tínhamos, esse sim um título verdadeiramente pernicioso, na medida em que apenas continha a política partidária, confundindo por essa via todas as possibilidades de intervenção política num espaço nacional com os aparelhos partidários.


Cenas da vida conjugal num mergulho pelo quotidiano




Se o Lopes Graça fosse irlandês e se em vez de ter reinventado o tradicional a partir do Bartok e do Kodaly preferisse os Clash podia ser o Shane MacGowan.



Uma das características mais desprezíveis do novo Público é a substituição da secção de política por uma secção designada por Portugal. Não cabe aqui discutir o interesse da anterior secção de política do jornal, do modo como "política" não significa necessariamente andar a cobrir a vida dos principais partidos, quase sempre pontuada por tricas e novelas patéticas. Não sei se para os jornalistas vai dar ao mesmo, mas entre "política" e "Portugal" vai um mundo. Portugal, em certo sentido, não significa absolutamente nada, a não ser que algo noticiado se passou num país com aquele nome. Temo que por detrás da substituição esteja a lógica comercial que entende que o leitor a conquistar, provalvelmente um imaginado leitor jovem que gosta de fotografias abundantes, de grafismos histéricos, entretenimentos e, claro, das artes, não gosta de política e acha que "os políticos são todos iguais". Portugal, por outro lado, renascido pela selecção, pelo Cristiano Ronaldo e por campanhas publicitárias abundantes, Sagres, Bes, etc, é uma coisa mais vendável. Uma lástima.


Conchas no fundo do mar




O pântano consensualista com o bafio de sacristia vai-se apoderando do país. Uma frase bombástica é sempre boa para começar qualquer debate e correr logo com as alminhas mais susceptíveis. Mas admito; ando com medo. Medo que o salazarismo saia da tumba e medo de ficar sem amigos. As últimas semanas foram algo chocantes. Desde o caso do jovem moderno, urbano e sofisticado do "não" até outro, desta vez advogado, com que apanhei no outro dia, que papagueava o argumento de Jaime Nogueira Pinto " é preciso compreender as coisas no seu tempo histórico" enquanto dizia que o Salazarismo teve bastantes coisas positivas e que o Hitler e o nazismo até foram positivos para a economia alemã, até que as coisas começaram a correr mal em 1940, passando por um outro, que dizia que quando os ciganos vendem na feira aos "portugueses" estão a exportar, porque vendem para uma cultura que não a deles, e que não são portugueses porque a única relação que têm com os portugueses é para lhes vender coisas e que quando os vê no hospital eles olham de lado para ele e que os ciganos e os indianos e os pretos é que se fazem de vítimas quando os verdadeiros racistas são eles, sinto-me rodeado por salazaristas e imbecis, apesar de serem boas e simpáticas pessoas. Pessoas amigas. Como se não chegasse o sequestro do consenso social por parte das forças conservadoras (se não há novo consenso o consenso é o que existe, embora possa não ser consensual) bem visível no discurso inadjectivável de Marques Mendes, e a utilização do relativismo moral e histórico, que tanto criticam na esfera dos "valores morais", para o revisionismo histórico e defesa da Velha Senhora esse discurso passa para o quotidiano não somente através da mimetização papagueada de argumentos que os seus próprios proponentes são incapazes de sustentar fora do macaqueamento mas também por uma ética da tolerância que oblitera qualquer possibilidade de debate e de reflexão crítica sobre a vida. A opinião adquiriu, nalguns circulos sociais, o estatuto anteriormente reservado exclusivamente ao gosto: não se discute. quanto muito troca-se. A sombra do Doutor Salazar persegue-me para onde quer que vá. Preciso de ajuda.



Certo dia Maradona convidou Zidane a ir ao seu programa televisivo. No curso da entrevista Zidane disse a Maradona que o seu Maradona era Francescoli.






Contraponto



Depois da "janela de oportunidade" e do " saber da experiência feito" a última grande moda estilística do comentário e do colunismo nacional é o "ponto final". Não o ponto propriamente dito, mas a expressão; querendo significar qualquer coisa do género " é isto e não há discussão possível". Trata-se de determinar de modo final o sentido de determinado evento ou expressão, com uma segurança impermeável a qualquer tipo de revisão futura. Um julgamento definitivo. O mais curioso, porém, é que se trata geralmente de um oxímoro, tipo inteligência militar, como diriam os saudosos Disposable Heroes... Nenhum dos utilizadores deste recurso estilístico está suficientemente seguro e convencido dos seus argumentos para os terminar com um singelo, mas nem por isso menos deslumbrante, ponto final. O ponto mesmo, e não a expressão. A coisa invariavelmente continua muito para lá do "ponto final". Faltando os argumentos, sobra o estilo.




Um ano depois


Foi há cerca de um ano que os subúrbios franceses se revoltaram. Alguém sabe o que sucedeu ao longo deste ano? Alguém faz um balanço das medidas entretanto implementadas, ou não? Alguém pergunta qualquer coisa a Sarko, o candidato? Alguém sequer se lembra?



É provável que o jornal Público, depois da reformulação, venha a sofrer do efeito Pedro Abrunhosa, embora em versão ainda pior. Abrunhosa desejou chegar a muita gente, subordinou a música a parâmetros de venda, insistindo nas baladas com lírica fanhosa servidas por um barroquismo visual modernaço que o tornou numa caricatura. A coisa funcionou bem no princípio, mas ao afastar-se dos grupos que consomem a música por intermédios de mediações distintas daquelas que governam o grande comércio a parada tornou-se perigosa. O consumo massificado é mais volúvel e um passo em falso pode ser a condenação. Foi isso que sucedeu. Quando perdeu o grande público, Abrunhosa olhou para trás e já não encontrou aqueles que no início simpatizavam com a sua popularização do jazz e do funk. Estava sozinho. O jornal Público estabilizou as vendas numa elite urbana, escolarizada, essencialmente à esquerda, mas não em demasia. Este grupo em Portugal não é grande e o seu crescimento lento. Ora o Público queria mais. A forma mais preguiçosa de se querer mais é popularizar mal. Diminuir textos, aumentar fotografias e usá-las de forma meio anárquica; subordinar os assuntos ditos de referência, essencialmente a política, a opinião e a investigação ao entretenimento, mesmo quando este aparece mascarado pelas artes. Para dirigir a remodelação, o Público escolheu Mark Potter, o homem que transitou o Guardian de broasheet para formato berliner. No caso do Guardian, correu bem, no do Público, palpita-me que vai correr mal. O mercado inglês não se compara ao português, especialmente porque há uma enorme classe média e classe média alta que compra jornais. O Guardian não quer roubar leitores ao Sun ou ao Daily Mail, quer roubá-los ao Telegraph, ao Times, ao Independent. Com um mercado de leitores como este, a luta pode ser criativa, deseja-se melhorar dentro de um quadro de referências. O Público, com esta remodelação, parece querer roubar clientes ao Correio da Manhã. É possível que roube alguns, mas quantos? Como a classe média que compra o Público tem net em casa e no trabalho e pode consultar um conjunto grande de jornais, parece-me que o diário de José Manuel Fernandes vai perder leitores, tanto para a net como provavelmente para os semanários, em especial o Expresso. Mas posso enganar-me, claro.



Aproveitando a excepção publicitária, que apenas abrimos para whiskys, safaris no Quénia, e livrarias em Setúbal, cabe informar os leitores deste blog - estou a imaginá-los, imensos, a dançar merengues pelas bancadas do Estádio da Luz - que no próximo dia 3 de Março, Sábado, pelas quatro horas, na bonita cidade de Setúbal, terra de poetas e treinadores de futebol, vai ser lançado planetariamente, se excluirmos os lançamentos informais na Feira da Ladra, o livro Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX. Pequeno volume em formato de bolso, ou de bolsa, com textos do maior brilhantismo. Uma autêntica delícia, coisas fofas, pequenas pérolas inadjectiváveis. Alguns dos 22 autores, aqueles que não trabalham para a Nasa, que não estou a fazer neurocirurgias ou a escrever poemas épicos na tundra escandinava, lá estarão. Contem com variedades diversas. Como grande atracção, o promotor do evento, jovem setubalense, vai vestir-se de homem-bala e ser lançado por um canhão situado no cais dos ferrys. A intenção é que chegue a Tróia. Depois dos lançamentos, há um grande convívio que incluí um jantar requintado constiuído em exclusivo pelas deslumbrantes fauna e flora locais. Em suma, chocos com arrozinho de grelos. Há melhor programa que este. A livraria chama-se Culsete e não fica longe do Estádio do Vitória de Setúbal.




Justiça poética II


O dia de São Valentim é também o Dia Europeu da Disfunção Sexual (aka, disfunção eréctil) e o Dia Mundial do Doente Coronário.


A bófia não manda aqui!


O bastonário dos médicos, Pedro Nunes, tem defendido que não será um referendo ou a lei do país a "alterar a ética de um grupo profissional". O responsável alega que a deontologia "se baseia num conjunto de conceitos que são da ética de cada profissão e tem um carácter humanista universal" que não pode ser mudado de acordo com conveniências legais ou sociais. Público, de hoje.




Casa de passe




Com excepção do Correio da Manhã, da Rádio Renascença e do Monde Diplomatique todos os jornais portugueses optaram por assumir uma posição neutra perante o debate da IVG. O modo como essa neutralidade se converteu em matéria noticiosa não deixa de ser revelador do estado do campo mediático nacional. Utilizando um conceito a que Mário Mesquita aludiu no domingo passado, na sua última crónica no Público, poder-se-ia dizer que estivemos na presença de um jornalismo sem memória. No acompanhamento que os dois diarios de referência portugueses fizeram da campanha predominaram duas formas: a notícia e a opinião. Por um lado, os jornais procuraram noticiar as acções de campanha dos movimentos e dos partidos políticos que nela intervieram. Por outro lado, abriram os seus espaços de opinião a um conjunto de agentes oriundos dos mais diversos quadrantes, colocando essas opinião em confronto. Observamos, assim, a emergência de uma lógica noticiosa que se aproxima perigosamente do directo televisivo, com as falsas transparências que esse tipo de jornalismo procura vender. Foi evidente, tanto no Público como no Diário de Notícias, a ausência de comparações com a campanha anterior, apenas superficialmente desenvolvidas. As questões paralelas ao tema principal, mas essenciais para a sua compreensão e para uma tomada de posição informada, foram geralmente desprezadas, o que permitiu despolitizar o debate, levando a que a campanha resvalasse para o campo da pericialidade médico-jurídica e dos valores morais e religiosos. Um exemplo. A educação sexual nas escolas foi considerada, por ambos os lados, um dos instrumentos essenciais para reduzir as gravidezes não desejadas, e por arrastamento o número de abortos. É uma questão que permanece, independentemente da natureza legal ou ilegal da prática. O que qualquer órgão de comunicação social neutro e competente faria perante esta situação seria recordar o que se passou nos últimos nove anos e apresentar um balanço aos seus leitores. Quem é que tentou introduzir programas de educação sexual e quem os combateu. Não tivemos, porém, nada disto. A neutralidade da imprensa foi conquistada ao espaço da pornografia, com a consequente demissão por parte dos diários do papel mais básico que podem desempenhar num espaço público democrático: não apenas reflectir as posições mas também de reflectir sobre elas.



No referendo de 2007 o "não" cresceu mais de 200 mil votos. O "sim" teve, no entanto, quase mais 1 milhão de votos. Diga-se que dos quase 9 milhões de inscritos votaram menos de 4 milhões. O número de votantes oficial é de 43.61% mas, se acrescentarmos, como devia ser, digo eu, os brancos e os nulos, alcançamos 45,54%. Olhando para o mapa eleitoral, assim de esguelha, diria, sem surpresas, que o factor fundamental que explica a direcção do voto é a diferença entre espaço urbano e espaço rural. Isto nota-se em quase todos os distritos, mas diferenças entre os concelhos urbanos e os concelhos rurais. A vitória do sim é bastante clara naqueles distritos onde tradicionalmente a esquerda não é tão forte. No Porto, por exemplo, o "sim" passou de 189 mil votos para 351 mil votos. Isto deve-se, fundamentalmente a concelhos como o Porto, Gaia, Maia, Gondomar, Valongo e Matosinhos. Em todos os outros o "sim" perde. Num concelho como Paços de Ferreira, o "não" passa dos 70%, em Felgueiras tem 63% e em Marco de Canaveses 64%. Note-se, porém, que em 1998, nestes dois últimos concelhos, o não teve quase 82%. É visível as pequenas grandes vitórias do "sim" mesmo em distritos onde perdeu. O "sim" dobrou o número de votos em Bragança, em Braga, na Madeira, em Viseu, e Viana do Castelo. Se olharmos para as capitais de distritos nestas regiões vemos uma enorme aproximação, mas ainda com o "não" à frente. Nos distritos mais populosos a sul, a vitória do "sim" é esmagadora. Na cidade de Lisboa, o sim ganha em todas as freguesias, apenas na Lapa a coisa foi por muito pouco. Alfama e o Castelo são os bairros mais pelo "sim". Diga-se que em Santa Comba Dão, distrito de Viseu, terra do grande português, o "sim" ganhou. O país dualista continua a existir, mas ainda assim, está um pouco mais urbano e laico. Um pequenito indício de algo.




A malta do Não passeia




O debate sobre a despenalização da IVG trouxe-nos grandes novidades, à direita do espectro político. Por um lado não foi surpreendente, na medida em que a intolerância lhes é habitual, a xenofobia que os defensores do não revelaram em relação aos espanhóis e em particular às clínicas espanholas que se irão instalar em Portugal. Elas foram-nos apresentadas como sendo os mensageiros do apocalipse. Propriedade de médicos que só pensam em dinheiro e que por isso vão elevar o aborto para dimensões nunca antes vistas. Ora, apesar de xenofobia subjacente a estas ideias, não deixa de ser reconfortante ver os maiores defensores do mercado livre a afirmarem-se exactamente contra o mercado livre. O que nos dizem é que neste caso a legalização de estabelecimentos que realizam a IVG tem que ser regulada e que o seu funcionamento não pode ser deixado à mão invisível. Ou se calhar não é bem isso. É que eles não querem legalizar nem criar regulamentos que não deixem as coisas ao critério de médicos, abortadeir@s e outros que tais sedentos de dinheiro. Olhem, desculpem lá, mas já não percebo nada.... Por outro lado, estes discursos revelam uma profunda desconfiança em relação às burguesias nacionais. O exemplo são sempre as clínicas espanholas. Deve ser, certamente, porque acham os portugueses incapazes de apanhar uma oportunidade de negócio e concorrer num mercado globalizado, ou neste caso iberizado.



O corrector automático do Word, em português, não reconhece a palavra Berlusconi. Entre as opções de correcção que nos surgem estão burlesco e burlosos.


4 segundos do homem que só sabia jogar com a cabeça





O exemplo


Soares Franco, representante da burguesia indígena com toque aristocrata comporta-se como este pessoal normalmente o faz. Apesar de já ter vendido parte do património do Sporting, condição para continuar ao leme do clube, procedimento que iria salvar a instituição, lançando-a para novas conquistas, Soares Franco vem agora dizer que afinal não é capaz. Não por culpa sua, claro. Este pessoal nunca tem culpa de nada. Por culpa do estado, da Câmara de Lisboa, do Metro. Por culpa dos portugueses, enfim. Por culpa de todos, menos dele e da sua direcção. Caso as instituições públicas não se mostrem céleres, leia-se mais céleres e benignas com o seu caso do que com os outros todos que devem ter em mãos, ele vai-se embora. É de homem. A burguesia em Portugal, como os menores de idade e os deficientes mentais, é inimputável.


Variações sobre o mesmo tema



Lo-fi


O desenvolvimento da tecnologia, ecografias e cenas desse género, permite aos defensores do não dizerem que tratam o embrião ou o feto por "bébe" ou "o meu bébe" e apresentarem essa representação como prova insofismável de que o embrião ou o feto é uma criança. Poderiamos responder sem o uso de tão modernas tecnologias, mas com argumentos igualmente sofisticados: "Que idade tem o seu filho? E os primeiros nove meses de vida, não contam?". Basta um calendário. Já para não dizer que tenho um amigo que trata, carinhosamente e sem ironias, o filho de mês e meio por "animal ou outras coisas piores", e estou a citar.



Partilhar um filme numa sala de cinema com espectadores. Eis um problema. Um picador de gelo afiado nas bochechas dos rabos é modesto para os tipos que gostam de comentar o filme à medida que a coisa vai acontecendo, como se fosse um jogo de futebol; dois picadores de gelo afiados nas bochechas do rabo para os tipos que procuram antecipar o que vai acontecer a seguir. É quase tão mau como ver um jogo de futebol na televisão de um café ao pé de um gajo que está a ouvir a rádio e a informar o povo do que vai acontecer três segundos depois. Três picadores de gelo nas bochechas dos rabos e uma bigorna bicuda para os casais de namorados que tapam metade do ecrã com línguas, narizes, alguns deles pontiagudos, cabelos, trancinhas e festinhas na cabeça. Tudo coisas fixes, que fazem sentido em milhões de sítios do mundo, mas não ali. E como tratar o tipo do lado que ri sempre nas partes onde eu acho, com tudo o que isso significa, que ele não deve rir. E o tipo do outro lado que gosta de ver o filme de pernas esticadas para os lados. Por que razão não põe os pés dentro da boca, é original e não chateia ninguém. Mas tudo isto parece óptimo, quando depois de chegar a casa um cidadão se apercebe que estão a transmitir mais um debate sobre o aborto. Perguntei pelo resultado. Disseram-se que o "sim" estava a ganhar prá ai uns 3 a 1 ou a mesmo 4 a 1, mas que o "não" ainda não tinha posto todos os jogadores em campo. 300 bigornas escaldantes nas bochechas dos rabos desses gajos que andam pela televisão a defender o "não".


Grandes portugueses


Preferia ser corno a ver o Benfica a ganhar a Taça dos Campões.
Guarda Abel
Expresso, 26-05-1990



A bola é feita de couro,
o couro vem da vaca.
A vaca come relva,
logo a bola é para ser jogada na relva.


Conclusões


Portanto, a corte, com fins declaradamente romântico-sexuais, não é necessariamente um reflexo da dominação masculina e de uma cultura misógina. Por outro lado, o epíteto vaca é polissémico,apesar de ser tendencialmente utilizado como termo insultuoso, ainda que de forma paradoxal, (agora ando com esta dos paradoxos, desculpem lá)na medida em que mulheres com um comportamento sexual, como dizê-lo, emancipado são altamente desejáveis. Poderemos ainda depreender que se a dimensão negativa do termo inclui em si mesma uma dimensão posiitiva, atrás mencionada, a dimensão positiva, a vaca é um animal fofo, reflexivo e funcional (isto é, belo, verdadeiro e bom) é triplamente elogiàvel. Logo, bater couros não é mau sendo até elogioso para a dama em causa, partindo do princípio que estamos a falar de relações heterosexuais ou lésbicas. É evidente que estas conclusões não são universalizáveis, o que constituiria um abuso etnocêntrico inqualificável (embora eu o possa fazer sem ser etnocêntrico. Vocês é que não podem). O debate sobre a vaca indiana é toda uma outra questão.



Se for um engate gay em princípio não. Aliás, é capaz de ser chato. Chamar vaca a jovens barbaduos e musculados, com camisolas de alças com redes e botas com esporas, ou a intelectuais sensíveis com uma enorme queda para a poesia ou, para não desfilar mais estereótipos, a contabilistas barrigudos e merceeiros desconfiados, é aborrecido. Vaca é chato. Já num engate lésbico é capaz de ser possível. Nos outros, deve depender. Na Índia, pode ser bem visto. Ou mal visto, ao contrário. "quem é que tu julgas que és para estar aí armada em vaca:" É pena, diga-se, que a função adjectivadora de "vaca" seja tão depreciada. A vaca é um animal fascinante.






Contabilidade e loucura



El loco

O paradoxo do jogo não apresenta solução à vista. Se na sexta-feira, no Estádio da Luz, a mentalidade contabilística poderá ter sofrido uma derrota para o prazer do jogo, no dia seguinte, em Alvalade, a vitória coube cabalmente (isto é uma cena de estilo, não é uma insuficiência semântica.) a um pragmatismo finalista um tudo nada imbecil. O Sporting não jogou um caralho e a própria atitude, seja lá o que isso for, demonstrada pelos jogadores durante o jogo foi de uma pobreza confrangedora. Mais uma vez, e paradoxalmente, só abriram a pestana depois de estar a ganhar por 3-1. Pressão a todo o terreno, velocidade na saída para o ataque, trocas de bola à primeira; quando já nada disto era estritamente necessário. A multidão, num frenesim dementado, no final aplaudiu uma exibição que durante 80 minutos foi, adjectivando a coisa algo hiperbolicamente é certo, um pedaço de merda.



Bater o couro a alguém equivale a epitetar esse alguém de vaca?





Estão a ver o Salazar a passear-se com a camisola do Eusébio na bagagem? Ou o Soares com a do Futre? Ou mesmo o Cavaco com a do Figo?
Quantos é que são dois mais dois, caros dignatários nacionais. O staff de Sócrates percebeu, finalmente, que eram quatro.
Fica assim um inusitado elogio. Não propriamente pelos fins da coisa, mas pela eficiência dos meios.


O Estúpido do jogo


O estúpido do jogo. Ou talvez não. A pergunta que se deve colocar é por que razão cedem os adeptos de futebol à imposição matemática, a regimes de contabilidade? Ou talvez isso seja mais aparência do que outra coisa. Apesar de estar irritado com o jogo, o problema é do jogo, não do árbitro, nem do esquema defensivo do Prof. Jaime, tenho a certeza que ontem chegámos aos sete milhões. A idade da continha neo-liberal não conquistou o currículo escondido do mundo do futebol. Apesar de tudo é um espectáculo. Embora isso valha o que valha na vida de todos os dias.


A tempestade



Marinheiros soviéticos




    António Vicente

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