"Sinuosa até na violência, negadora de virtudes sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva, a «moral das senzalas» veio a imperar na administração, na economia e nas crenças religiosas dos homens do tempo. A própria criação do mundo teria sido entendida por eles como uma espécie de abandono, um languescimento de Deus."
"Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a actividade política, a burocracia, as profissões liberais. É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente princípal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenho. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os proconceitos e, tanto quando possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição. Não me parece relacionar a tal circunstância um traço constante de nossa vida social: a posição suprema que nela detêm, de ordinário, certas qualidades de imaginação e «inteligência», em prejuízo das manifestações do espírito prático ou positivo. O prestígio universal do «talento», com o timbre particular que recebe essa palavra nas regiões ... provém sem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduo o simples exercício da inteligência, em contraste com as actividades que requerem algum esforço físico. O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna dos antigos senhores de escravos e seus herdeiros. Não significa, forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo mas amor à frase sonora, ao verbo espôntaneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e acção."
SBH, Raízes do Brasil, 1936