As comemorações dos 25 anos do lançamento do Memorial do Convento foram uma oportunidade desperdiçada para discutir um dos temas preferidos do país: as obras públicas. Na imprensa de "referência" a abordagem seguiu dois caminhos. O Público optou por fazer uma reportagem sobre o convento propriamente dito, num texto que cruza economia, turismo e estética. A autora do artigo, cujo nome não me recordo, porque este é um blog sério e ponderado que não comenta assuntos a quente, relevou o impacto do livro no turismo da vila, nas excursões escolares que dão vida ao convento e acaba a retratar a glória de algumas das salas de que Saramago fala no livro. O Diário de Notícias, seguindo também um ponto de vista económico optou antes por sublinhar o milhão de exemplares vendidos em Portugal. Nada mau para um país de analfabetos obcecado com bola e que só lê Margarida Rebelo Pinto e quejandos. O Eduardo Pitta, Da Literatura (não linkamos porque já o fizemos uma vez e o senhor não deu troco), está como nós e também não gostou da abordagem do DN. O senhor acha que uma obra daquele calibre (palavras nossas) não tem que ser avaliada pelas vendas. Não concretizou, mas imaginamos que para Pitta a coisa só possa ser avalida pela qualidade literária. Nem sequer do ponto de vista de uma sociologia da leitura ou, para não sermos tão chatos, dos estudos sobre recepção a coisa interessa. A ninguém lembrou o facto de o Memorial do Convento ser um livro sobre obras públicas. Sobre o Centro Cultural de Belém e sobre a Expo-98. Sobre o Euro-2004 e sobre a Casa da Música. Sobre as curiosas simetrias entre o Sócrates e Cavaco e as lógicas de funcionamento do bloco central. Sobre o que se fez com os fundos europeus desde 1986. É claro que se quisermos ser uma beca mais chatos e sairmos dos terrenos do TGV e do novo Aeroporto de Lisboa é também um livro sobre o poder, sobre obscurantismo e o papel da igreja em Portugal e sobre as relações de classe. Sobre governos preocupados em inscrever o seu nome na história através da grandes obras de regime e sobre o valor do trabalho. Sobre investimento público não reprodutivo e o desprezo pela vida humana. Mas isto são merdas que não interessam a ninguém quando comparadas com a glória do Convento e a qualidade literária da obra. Foi bonito de se ver.